Com a promulgação da Constituição Cidadã em
1988, o processo penal se assentou sobre o princípio basilar do in dúbio pro
reo. Isto significa que quando houver dúvida quanto a culpabilidade do réu
devido a insuficiência de provas dever-se-á inocentar o réu, confirmando o
princípio da presunção de inocência. Entretanto, o in dúbio pro reo não é
soberano, sendo que parte da doutrina e jurisprudência aceitam a possibilidade
de aplicação in dúbio pro societate
no rito do júri na fase de pronúncia.
Grande parte da doutrina, representada por
MIRABETE, CAPEZ e MOUGENOT apóiam a aplicabilidade do favorecimento da
sociedade em caso de dúvida quanto a culpabilidade do réu na sentença de
pronúncia. Para estes, se “o juiz se convencer da existência do crime e de
indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu
convencimento”. O entendimento é de que não é necessária a certeza da
culpabilidade, mas mero indício suficiente de autoria. Nas palavras de
MIRABETE:
Como juízo de admissibilidade, não é necessário à pronúncia que exista a
certeza sobre a autoria que se exige para a condenação. Daí que não vige o
princípío in dubio pro reu, mas se resolve em favor da sociedade as eventuais
incertezas propiciadas pela prova( in dubio pro societate).
Para
esta corrente doutrinária, o mero fato acontecido, suscetível de conduzir ao
conhecimento de fato desconhecido é suficiente pra submeter o réu ao julgamento
por seus pares. A justificativa disso é a primazia à tutela da
segurança pública em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do
sujeito acusado de ter praticado um crime doloso contra a vida, valendo-se de
presunções e dúvidas para formar um juízo de admissibilidade de acusação em
desfavor do acusado.
Nesse sentido, afirma Edilson Mougenot
Bonfim:
“Assim, nessa decisão,
apenas se reconhece a existência de um crime e a presença de suficientes
indícios da responsabilidade do réu, apontando-se a direção a ser seguida pela
ação penal. Na dúvida, cabe ao juiz pronunciar, encaminhado o feito ao Tribunal
do Júri, órgão competente para o julgamento da causa. Nessa fase, vigora a máxima
in dúbio pro societate.”
Igualmente, é o entendimento de Fernando
Capez:
“Na fase de pronúncia
vigora o princípio do in dúbio pro societate, uma vez que há mero juízo
de suspeita, não de certeza. O juiz verifica apenas se a acusação é viável,
deixando o exame mais apurado para os jurados.”
Em contrapartida, existe outra corrente
doutrinária, encabeçada por NUCCI, RANGEL e JOÃO CARVALHO MATOS, que é
contrária a aplicação do princípio in dúbio pro societate. Para estes, o cenário da pronúncia não deve
admitir que o juiz se limite a um convencimento íntimo a respeito da existência
do crime. Nas palavras de NUCCI:
“ O mínimo que se
espera para haver pronúncia, é a prova certa de que o delito aconteceu, devendo
o magistrado indicar a fonte de seu convencimento nos elementos colhidos na
instrução e presentes nos autos. Caso o magistrado não encontre indício
suficiente de autoria – preceitua o art. 409 – deverá impronunciar o réu(...)”.
Destarte, o juiz tem o dever de verificar a
admissibilidade da acusação e fundamentá-la através do mínimo suficiente de
autoria, a fim de decidir a possibilidade de levar um réu ao Tribunal do Júri
ou não. Isto é, o juiz age como um filtro, analisando o que pode e não pode ser
avaliado pelos jurados, zelando pelo respeito ao devido processo legal e
somente permitindo que siga a julgamento a questão realmente condizente com o
Tribunal do Júri. Logo, em face da existência de indícios frágeis, vagos,
nebulosos, subjetivos, o caminho é o da impronúncia. Trilhando esse caminho, o então
juiz da Comarca de Campinas-SP, José Henrique Rodrigues Torres explicita:
“Não me parece devido nem jurídico invocar, na pronúncia, o provérbio in
dubio pro societate. Não se deve admitir nenhum julgamento com base na dúvida.
Nenhum. O uso da mencionada expressão é um equívoco, que, infelizmente, tem
ocorrido com frequência. Para prolatar a pronúncia , embora a decisão não seja
de mérito, mas sim de exame da viabilidade da acusação, deve o juiz aferir a
suficiência das provas e indícios (...) O julgamento com base na dúvida não
interessa à sociedade, que exige certeza fundamentada em todas as decisões
judiciais (Constituição Federal, artigo 93, inciso IX).
Além disso, o princípio in dubio pro
societate viola flagrantemente os princípios da presunção da inocência e da
motivação das decisões judiciais, insculpidos nos art. 5º, LVII e 93, IX da
Constituição Federal de 1.988.
Ainda discorrendo sobre a inaplicabilidade
de in dúbio pro societate, Paulo Rangel:
Entendemos, que, se há
dúvida é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou
em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível
que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a
júri, onde o sistema que impera é o da íntima convicção. O próprio processo
judicial instaurado por si só, já é um gravame social para o acusado, que,
agora, tem a dúvida a seu favor e, se houve dúvida quando se ofereceu a
denúncia, o que por si so não poderá autorizá-la, não podemos perpetuar essa
dúvida e querer dissipá-la em plenário, sob pena dessa dúvida autorizar uma
condenação pelos jurados.
Parece ser mais acertada a corrente
doutrinária que veda a aplicação do princípio in dúbio pro societate na
sentença da pronúncia, pois havendo dúvida, deve-se interpretar a favor do réu,
para fazer valer o princípio da presunção de inocência. Isto é, submeter um
provável inocente ao Tribunal do Júri é possibilitar uma provável e injusta
condenação.
Nesse sentido é ensinamento de João Carvalho
de Matos, que ao citar Carrara assevera:
“Tudo aquilo que
oferece duas conclusões lógicas não permite ao juiz criminal admitir a
contrária ao réu, porque a condenação é fruto de do prova induvidosa, já que o
Estado não tem maior interesse na verificação da culpabilidade do que na
verificação da inocência”
O que ocorre é que o Tribunal do Júri é
extremante maleável e tendencioso e o fato de sua composição ser composta por
juízes leigos possibilita a existência de julgamentos controversos. Logo, ao se
permitir um réu ser julgado por seu pares, quando devia ser impronunciado, é
possibilitar a ocorrência de uma condenação injusta. Exemplo disso é quando a
mídia cobre o crime, manipulando a opinião pública a fim de obter uma
condenação e realizar uma verdadeira
situação de “pão e circo”. Se houver influência da mídia e o réu for
pronunciado a sua condenação será certa.
Nesse sentido foi pressão
midiática no júri Márcio Thomaz Bastos cita o exemplo do caso Daniela, atriz da
rede globo, assassinada por seu namorado, no qual a pressão da imprensa fez uma
operação de linchamento dos réus, eivando o procedimento e negando-os de ver
sua culpabilidade estabelecida pelos jurados, com base na prova e de acordo com
a justiça e os ditames da consciência de cada julgador.
Portanto, para salvaguardar a presunção de
inocência e a justiça nos julgamentos, deve-se afastar a aplicabilidade do
princípio in dúbio pro societate na sentença de pronúncia.
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