quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A formação do Juiz e as Escolas de Magistratura

Artigo de autoria de Luis Felipe Salomão, ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor honoris causa da Escola Superior da Advocacia do Rio de Janeiro. Foi diretor da Escola Nacional da Magistratura (ENM/AMB) e membro do Conselho Superior da Enfam. Originalmente publicado: Boletim da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados., n 11, 2011. Disponível em: < http://www.esmeg.org.br/noticias/formacao-de-juizes/>



            1. Introdução

O estágio atual da preparação e formação de juízes no Brasil é tema por demais desafiador. Vem a calhar a obra imortal de Kafka, que superou seu tempo e apresenta um painel rico em várias questões da vida moderna. Direito, psicanálise, religião, são assuntos tratados com ab-soluta transparência e objetividade.O percurso surrealista de Joseph K, no magnífico texto de “O Processo”, homem indefeso e incrédulo dentro de um sistema judicial anacrônico e corrupto, hierarquizado e inacessível, cruel e injusto, é o pano de fundo de uma ampla reflexão sobre o Judiciário que se iniciou no segundo pós-guerra e ainda não terminou.
Por isso, a importância da preparação do magistrado, de grande relevância para o processo de Mundialização pelo qual passa a sociedade atual. 

2. Seleção de Juízes
 Um dos problemas contemporâneos mais complexos, em um mundo sem fronteiras e cada vez mais conectado em razão da revolução ocorrida, sobretudo nos últimos 20 anos, nos meios e modos de comunicação, é, sem dúvida, descobrir a “forma” correta de seleção dos juízes. Vale dizer, diversos países debatem sobre a maneira de melhor recrutar o corpo de magistrados encarregados de prestação da jurisdição, de maneira a atender às exigências da sociedade moderna. Há um consenso de que não basta um candidato que domine puramente a ciência jurídica, do ponto de vista exclusivamente técnico. Os desafios do mundo atual exigem um jurista com sensibilidade e inteligência emocional, além de formação humanística que lhe permita conhecer noções gerais acerca de sociologia, filosofia, ética, deontologia, liderança, administração, micro e macroeconomia, relacionamento com os outros Poderes e com a mídia, dentre outros atributos. Não é tarefa fácil estabelecer uma forma de seleção que possa aferir tantos predicados, de modo a buscar o perfil de juiz desejado pela sociedade, sobretudo os mais vocacionados. Na maioria dos países, o recrutamento para a magistratura tem como base, em regra, o ingresso pela via do concurso público. Alemanha, França, Portugal e Espanha possuem “escolas de magistratura” com longa experiência, e nenhum magistrado começa a trabalhar sem que tenha passado, pelo menos, dois anos em treinamento.
          Na verdade, o concurso público é realizado para ingresso nas próprias escolas, e o curso ali ministrado tem caráter eliminatório. Também de modo geral, na Europa Continental, sempre que uma lei entra em vigor, os juízes inicialmente a debatem, estudam-na e entendem adequadamente seu alcance, pois se acredita que o magistrado bem capacitado faz a lei ter eficácia plenamente, impedindo aquele velho chavão de que o texto legal é bom, “mas não pegou”. A necessidade de permanente atualização dos juízes é também aferida no momento da promoção na carreira.
No Brasil, após a reforma constitucional de 2005, a Emenda 45 estabeleceu a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento do Magistrado – Enfam (artigo 105, parágrafo único, da CF/88). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Enfam nasceu da Resolução 3, de 30 de novembro de 2006, e está sendo estruturada para cumprir, com as Escolas de Magistraturas já existentes, sua elevada função constitucional.

                3. A preparação dos juízes


           Introduzir é conduzir de um lugar para outro, fazer entrar num lugar novo. Adquirindo por empréstimo a belíssima imagem de Michel Miaille a visita a uma casa, com a orientação de um guia, é sempre uma experiência diferente. A visão que se tem dos cômodos da casa, as fachadas, seus ambientes e interiores, é a de uma terceira pessoa, e não do próprio visitante. Visitar a construção sozinho, sem o guia, implica outra forma de observação, descobrindo as divisões internas, os quartos fechados, a lógica do edifício. Há ainda a visão daquele que é um habitante da casa, que conhece os relatos familiares, as escadas ocultas, a atmosfera íntima dos ambientes. Para logo se verifica que um mesmo fenômeno permite uma diversidade de percepções, dependendo do ângulo que o observador o examine. Assim também é a preparação que se deve realizar do magistrado recém-ingresso; permanente, continuada, para que a “seleção” se conecte à “preparação”, em seguida ao exercício da função e depois ao constante “aperfeiçoamento” do juiz.
É como se, prosseguindo na mesma imagem do “visitante e da casa”, além de se procurar um panorama geral da construção, ainda venha a se examinar as suas estruturas. Por outro lado, qualquer estudo do direito não pode ser minimamente compreendido, senão em relação a tudo que permitiu sua existência, vislumbrando-se, em seguida, um futuro possível. É dizer, devemos projetar o direito no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a razão de ser, vinculando-o a outros fenômenos da sociedade, solidário com o tempo passado, presente e futuro. O conjunto das normas jurídicas é, antes de mais nada, uma visão generosa de um povo, buscando reduzir os antagonismos sociais. O juiz é o grande artífice dessa obra de engenharia social, o guardião das promessas constitucionais, e a democracia exige seu adequado preparo para bem e fielmente cumprir sua missão.


               4. Perfil de ingresso na magistratura brasileira

               A última pesquisa sobre o tema, extensa e detalhada, foi realizada em 2005 pela Professora Maria Tereza Sadeck (USP), uma das maiores especialistas em estudos sobre Poder Judiciário, apontando o perfil dos juízes que ingressam na magistratura brasileira. Conforme o estudo, 96,5% dos juízes ativos exerceram atividade profissional anterior ao ingresso na magistratura, contra apenas 3,5% que não a realizaram, o que descaracteriza a ideia de que o juiz ingressa sem experiência. O tempo médio de formatura até o ingresso na magistratura é 7,2 anos, reforçando essa tese. Quanto ao exercício de atividades acadêmicas, 4,8% dos magistrados lecionam em faculdade de direito pública, 20,3% em faculdade de direito privada, 17,1% ministram aulas em escolas de magistratura e 10,3% atuam em outras instituições. Nítido, portanto, que a maioria dos juízes tem dedicação exclusiva à missão de julgar.
             A tendência, no Brasil e no mundo, é o recrutamento de candidatos mais jovens, ainda não inseridos completamente no mercado de trabalho. Esse fenômeno da juvenilização é comum na Europa, especialmente na França, Itália, Portugal, Espanha e Alemanha. Em todos os casos, é a democracia de acesso que induz a juvenilização. No sistema da commom law, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, o recrutamento é diferente. Em regra, não há concursos públicos, e a seleção é realizada ora por eleição, ora por indicação da Corte ou do Presidente da República, apontando os advogados mais antigos e experientes e, claro, profissionais com idades mais avançadas. 
                 Os dados de 2005 permitem uma útil comparação com os elementos extraídos da significativa e pioneira pesquisa “O perfil do magistrado brasileiro”, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em conjunto com a Associação de Magistrados Brasileiro (AMB), realizada em 1996 pelos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos. O exame comparado dos números permite um olhar generoso quanto à evolução da magistratura nos últimos anos. No estudo do IUPERJ, indagouse a opinião dos magistrados acerca da forma de ingresso na carreira. Dentre os juízes de primeiro grau em atividade, 98,2% acreditam que o sistema de concurso público melhor assegura o estado democrático de direito, contra 1,8% que pensa ser o processo eletivo um meio de aproximar o Poder Judiciário aos valores da comunidade de maneira mais efetiva. A pesquisa apontou também que, para 62,9% dos juízes de primeiro grau e 58% dos magistrados de segundo grau, o concurso público para ingresso na magistratura, na forma pela qual vem sendo realizado, tem facultado o acesso de todos os profissionais do direito aos seus quadros, possibilitando o recrutamento de pessoas de variadas faixas etárias, de diferentes regiões e com formações culturais diversas. A assertiva de que as Escolas da Magistratura devem servir como instrumento que favoreça uma melhor seleção dos futuros juízes, oferecendo ensino especializado àqueles que pretendem concorrer à magistratura e prevendo concessão de bolsas de estudo para os seus melhores alunos, conta com a concordância de 59,1% dos juízes de primeiro grau e 63,3% dos de segundo grau.
             Um dado muito relevante, que já despontava em 1996, é o de que os magistrados de primeiro e segundo grau, na proporção de 45% e54,2%, respectivamente, afirmam ser importante a passagem dos futuros juízes pela Escola da Magistratura. Naquela época, dentre os magistrados que ingressaram na carreira mediante concurso, 32% dos juízes de primeiro grau e 6,6% dos de segundo grau frequentaram Escola da Magistratura. A experiência profissional  anterior na área de Direito era vista como condição indispensável para ingresso na carreira por 74,4% dos juízes de primeiro grau e 71,2% dos de segundo grau. A maioria dos entrevistados (58,3% dos juízes de primeiro grau e 58,9 dos de segundo grau) avaliaram que, nos dias atuais, a capacitação do magistrado, para além de seu talento, está associada à qualificação técnica, perícia científica e formação especializada. Concordaram que a carreira do juiz, para se fazer independente de avaliações subjetivas, deve ser institucionalizada pelo Poder Judiciário, segundo critérios de titulação como ocorre em outras profissões, a partir da criação de cursos orientados para qualificação progressiva dos magistrados.

               5. As Escolas da Magistratura no Brasil

          Há grande diversidade em relação às escolas em funcionamento, algumas se voltando para a formação de juízes, outras se dedicando à preparação, seleção e aperfeiçoamento. De acordo com os dados colhidos da pesquisa realizada pela juíza Maria Inês Correa de Cerqueira César Targa, realizada no ano de 2005, dentre as Escolas do País, 54,54% são vinculadas a Tribunais e 27,27%, a associações de magistrados; 18,18% não têm vínculos. Analisando ainda os números, majoritariamente (68,18%) as escolas brasileiras exploram dúplice atividade: formação do candidato à magistratura e formação inicial e continuada do magistrado já empossado. Dedicam-se apenas ao aprimoramento do magistrado 22,72% das escolas e, somente à formação do candidato, 9,09%. A maior parte das escolas (72,72%) tem cursos regulares para candidatos à carreira e 13,63% ministram cursos regulares aos magistrados já empossados. Em regra, os juízes que ingressaram na carreira recebem cursos esporádicos (68,18%). A pesquisa também revela que a atividade de formação do candidato à magistratura tem sido desenvolvida de forma mais organizada do que aquela destinada aos magistrados. A média dos cursos preparatórios é de 703,56 horas-aula, ao passo que à formação inicial continuada dos magistrados empossados são destinadas, em média, 133,50h e 22h, respectivamente. Aponta o estudo que o corpo docente das Escolas é formado, em grande parte, por juízes (60,75%), advogados (17,89%) e membros do Ministério Público (13,01%). Apenas 8,35% dos docentes não integram essas carreiras. O grupo de professores inseridos nas Escolas é composto de 10,46% de doutores, 22,14% de mestres e 29,31% de especialistas. É relevante o fato de que mais da metade das escolas (59,09%) obtém suas receitas dos cursos preparatórios que ministram.

            6. Conclusão

           Destarte, é urgente e importante pensar na formação do juiz do futuro, adequando-a às aspirações da sociedade. O pleno desenvolvimento das escolas oficiais criadas pelos artigos 105, parágrafo único, I, e 101-A, I, da CF/88, junto ao Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho, contando com a participação das escolas existentes e com as sugestões da base da magistratura, é ponto relevante no atual estágio de evolução quanto à melhor formação dos juízes brasileiros. Ressalte-se que esses são os únicos órgãos vocacionais e com assento constitucional para estabelecer políticas públicas de seleção, formação e aperfeiçoamento de juízes. Urge também que os concursos públicos para seleção de magistrados tenham a participação ou sejam realizados pelas Escolas de Magistratura, de modo a que o recrutamento obedeça à mesma diretriz da preparação. Parece importante, ademais, a inserção de mecanismos de seleção que contemplem a busca dos mais vocacionados para a carreira, elementos que devem se somar ao conhecimento técnico indispensável ao exercício da profissão. Além disso, primordial que haja um peso específico para os aspectos humanísticos da formação dos quadros da magistratura. Igualmente relevante é conferir autonomia administrativa e financeira às Escolas de Magistratura, pois, somente com a possibilidade de planejar seus objetivos estratégicos, a magistratura ampliará o acesso dos cidadãos a uma justiça ágil, mais bem aparelhada, informatizada e, portanto, transparente e capaz de cumprir plenamente sua função social.

Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor honoris causa da Escola Superior da Advocacia do Rio de Janeiro. Foi diretor da Escola Nacional da Magistratura (ENM/AMB) e membro do Conselho Superior da Enfam.

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